8. Cluny e a reforma da Igreja

8. Cluny e a reforma da Igreja

No século X, a politicagem e a corrupção dos costumes chegou à própria cátedra de São Pedro. Para salvar a Igreja do "século obscuro", os religiosos de um mosteiro na França decidiram empunhar uma corajosa arma: a sua santidade. Descubra como a Abadia de Cluny foi decisiva para a reforma da Igreja e para a civilização de toda a Europa.

 

Após a invasão viking, a Europa foi totalmente fragmentada. Diferentemente da Inglaterra, que resistiu bem à invasão dos vikings, mantendo e ampliando a sua unidade política, o resto do continente viu pequenos senhores de terra organizarem e fortificarem seus próprios castelos, em um fenômeno que ficou conhecido como feudalismo. Por meio de alianças de "vassalagem", os servos da gleba prestavam fidelidade e trabalhavam para os seus suseranos, enquanto estes ofereciam-lhes proteção e moradia.
 
Para resistir aos bárbaros nórdicos – muito mais cruéis que os que fizeram cair o Império Romano –, muitos monges e bispos encastelaram os próprios mosteiros e ambientes eclesiásticos, copiando o modelo feudal vigente na Europa. Isso fez o poder temporal mesclar-se ao da Igreja, de várias formas.
 
"A secularização dos bens da Igreja, essa doença do século IX, continua e ultrapassa em gravidade o que se viu no tempos dos merovíngios. Generaliza-se o preenchimento dos cargos eclesiásticos pelos poderes civis, prática já muito cara a Carlos Magno. Chega-se, pois, ao cúmulo daquele erro que há cinco séculos vinha ameaçando continuamente a sociedade cristã: a intromissão do poder civil na Igreja e a sistemática confusão entre os dois poderes." [1]
A questão das investiduras leigas – como ficou chamada a nomeação de cargos eclesiásticos por chefes políticos –, por exemplo, fez que monges, bispos e inclusive Papas ficassem submissos a reis, imperadores e nobres, em um período que ficou conhecido por saeculum obscurum (expressão cunhada pelo Cardeal Barônio, discípulo de São Filipe Néri). De fato, o século X foi marcado pela nefasta influência de famílias romanas na eleição dos Sumos Pontífices. Nessa época – provavelmente mais do que em qualquer outra –, a corrupção do mundo entrou com força na Igreja. Papas praticavam a simonia, davam de ombros para a disciplina do celibato, morriam assassinados e, muito preocupados com maquinações políticas, praticamente não interferiam nos assuntos da Igreja. O bispo de Roma era mais um senhor feudal e chefe político que propriamente um líder espiritual.
 
O iluminista e anticlerical francês Voltaire, ao comentar a vida dos Papas dessa época, escreveu: "É surpreendente que, sob tantos papas tão escandalosos e tão pouco poderosos, a Igreja romana não tenha perdido nem suas prerrogativas, nem suas pretensões" [2]. É preciso concordar com Voltaire, complementando, porém, que, se esse fato é realmente surpreendente, é porque ali, por trás das condutas erradas e pecaminosas dos homens, agia o próprio Deus.
 
Com efeito, em 910 – ao mesmo tempo em que Roma parecia sucumbir à corrupção dos costumes –, num canto obscuro da Europa, Guilherme de Aquitânia (também chamado de "o Piedoso") levanta o mosteiro que será responsável pela reforma da Igreja e pela civilização do continente. Aconselhado por São Bernão, ele funda a Abadia de Cluny, mantendo-a livre de influências políticas e diretamente vinculada a Roma. Graças a essa independência do poder secular, os monges de Cluny puderam escolher os seus próprios superiores – homens santos, que despenderam grandes esforços para a revitalização da fé. De fato, ao cabo de muitas viagens – após as quais inúmeros mosteiros se uniram a eles –, o abade de Cluny passou a cuidar espiritualmente de toda a Europa: em cada porção de terra havia um recanto diretamente submisso à abadia francesa.
 
A Regra de São Bento foi adotada pelos monges cluanicenses e, em pouco tempo, aqueles ensinamentos que há muito eram conhecidos – principalmente graças aos esforços de São Gregório Magno e do bem-aventurado Alcuíno, à época de Carlos Magno – passaram a ser fielmente vividos. Foi justamente nesse período de reforma monástica que surgiu uma das mais belas flores do Evangelho: a educação cristã, pela qual as pessoas eram formadas não simplesmente para o conhecimento, mas para a santidade.
 
O primeiro superior de Cluny foi São Bernão. Como seu sucessor, foi eleito Santo Odão. Desde pequeno, Odão fôra consagrado pelo pai a São Martinho de Tours. Com problemas para ter filhos, ele prometeu a Deus que, se aquele nascesse, educá-lo-ia para a vida religiosa. A promessa funcionou, pois o menino nasceu, mas, com o passar do tempo, o seu pai acabou por esquecer-se do compromisso que tinha feito. Embora fosse muito temente a Deus, o jovem Odão cresceu sendo formado para a cavalaria. Quando uma doença o prostrou, o pai recobrou a consciência de sua antiga promessa e comunicou-a ao filho, que imediatamente deixou tudo para fazer-se monge. Na vida monacal, sua santidade refulgia com força, principalmente nos milagres que Deus operava por suas mãos.
 
Outro santo abade de Cluny, considerado o maior de todos, foi São Hugo. Nos séculos XI e XII, praticamente não havia um concílio em que não estivesse presente. Influenciou na eleição de Papas – foi pai espiritual de São Gregório VII, por exemplo –, na solução de heresias – como a de Berengário de Tours –, na luta contra a simonia e na implantação do celibato. Foi graças à sua ação – e a de outros abades, como Odilão e Pedro, o Venerável – que se construiu em toda a Europa uma verdadeira "rede" de mosteiros reformados.
 
Quando começaram a aparecer Papas santos, então, a "rede" de Cluny foi "colocada na tomada" e passou a iluminar todo o continente. A grande lição de Cluny é que de nada adiantam Papas santos sem haver fiéis que os obedeçam. Importa, antes, restaurar o "tecido eclesial", a fim de que, quando Deus enviar um Pontífice providencial, a Igreja saia efetivamente de sua crise. Para tanto, a solução atual talvez não esteja nos mosteiros, senão nos leigos – homens e mulheres de fé, que queiram levar adiante a verdadeira educação cristã, buscando a própria santificação e a contemplação da Verdade.
 
Enfim, após os seus anos de glória, Cluny entrou em decadência. Por problemas financeiros e circunstâncias políticas, o rei da França começou a nomear os abades do lugar, criando na Ordem justamente o que os seus monges mais combateram: a influência política. Independentemente disso, a Abadia desempenhou o seu papel histórico para o bem da Igreja. Oxalá o século XXI seja capaz de repetir e aprimorar a experiência de Cluny, preparando o terreno para um Papa da Providência e para o dia em que a Igreja finalmente será colocada de volta nos trilhos.
 
Referências
 
  1. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 541
  2. Essai sur les mœurs et l'esprit des nations, XXXV
         Fonte: Pe Paulo Ricardo