2. A conversão de Clóvis, rei dos francos

2. A conversão de Clóvis, rei dos francos

Para reconduzir a Europa invadida pelos povos bárbaros à fé católica, foram necessários os sábios conselhos de um bispo e as incansáveis orações de uma mulher. Conheça como a conversão de Clóvis transformou a Gália dos bárbaros na França católica, “a filha primogênita da Igreja”.

 

Marcando a passagem da Idade Antiga para a Idade Média, a invasão do Império Romano pelos bárbaros – que ainda Santo Agostinho presenciou, ao ver a cidade de Hipona sitiada pelos vândalos – se deu principalmente pela ação cruel e ambiciosa dos hunos. Esse povo que vivia na Ásia Central, famoso por seus combates a cavalo, marchou rumo a Oeste, massacrando populações, punindo seus desafetos com a cruel prática do empalamento e alardeando o terror. Ao contrário dos demais povos bárbaros, eles eram nômades e viajavam não para dominar, senão para saquear os povoados por onde passavam. As notícias de suas incursões fizeram as populações que viviam no oeste da Ásia migrar para a Europa, o que culminou na invasão do Império Romano do Ocidente.
 
Roma não resistiu aos ataques dos bárbaros porque estava tomada pela corrupção dos costumes. O Império já não era mais formado por tropas destemidas e organizadas, mas por pessoas entregues aos prazeres da comida, da bebida e da luxúria. Não foi, pois, muito difícil para os povos estrangeiros vencerem aquela corja dissoluta e se fixarem na Europa, que se foi descristianizando completamente.
 
Os cristãos não perderam os seus territórios somente para os pagãos, como também para os hereges arianos. Sabe-se, por exemplo, que os godos e vândalos, convertidos ao arianismo pela pregação de Úlfilas, não só disseminavam a sua religião por onde passavam, como perseguiam e matavam os cristãos católicos, fazendo milhares de mártires. No norte da África, os trabalhos de Santo Agostinho para levar à fé inúmeras almas foram substituídos por uma rápida e sistemática proibição do verdadeiro cristianismo.
 
Todos esses fatos integram um quadro histórico nada animador. Roma, saqueada por Genserico, já não era capital de mais nada, a região hoje pertencente à Alemanha e à França fora tomada por bárbaros de todo o tipo... Parecia ser o fim da religião cristã.
 
Só que Deus, em Sua providência, envia a esses tempos difíceis os Seus santos. Na cidade de Reims, ao norte da França, o bispo São Remígio – Rémy, em francês – não desanimou perante a destruição da Europa. No meio da luta dos bárbaros para conquistar territórios, este santo pastor viu em Clóvis, rei dos francos, uma oportunidade para a reconstrução do Ocidente. Escolha sábia a de Remígio, pois “os francos eram ainda pagãos” e, segundo o testemunho unânime de “todos os missionários que hoje difundem o Evangelho em terras africanas”, “é infinitamente mais fácil trazer para Cristo os negros ainda idólatras do que aqueles que se converteram à religião muçulmana” (ou às heresias da época, como o donatismo ou o arianismo) [1].
 
Em um arranjo política, diplomática e espiritualmente perfeito, o santo bispo de Reims conseguiu unir em matrimônio Clóvis e a princesa católica Clotilde, santa canonizada pela Igreja. Sua vida provada por inúmeros sofrimentos não a fez fugir da dificuldade de um cônjuge pagão. Assistida pela Missa diária – celebrada na capela de sua própria casa –, esta santa mulher trabalhou com temor e tremor não só para a própria salvação, mas principalmente para a conversão de seu marido e de seu duro coração de guerreiro. Escreve Daniel-Rops a esse respeito:
 
“Assim que se viu casada, Clotilde começou a trabalhar para a conversão do seu esposo. O resultado, porém, não foi imediato, pois Clóvis ainda se conservou pagão durante cinco ou seis anos, e essa obstinação representou um excelente augúrio quanto à sinceridade da sua futura adesão. Deixa que batizem o primeiro filho que lhes nasce, mas, quando este morre, exclama para a esposa: ‘Os meus deuses tê-lo-iam curado; o teu não o salvou!’ Nasce-lhes um segundo filho, que é batizado e que adoece também; mas – diz o bom Gregório de Tours – ‘Clotilde orou tanto pela recuperação da criança que Deus lha concedeu’. Assegura também o cronista que Clotilde não cessava de falar a Clóvis do Deus dos cristãos. Sem resultado? Quem pode calcular a sorte das sementes que a fé e o amor lançam no mais íntimo de uma alma, deixando a Deus o cuidado de fazê-las germinar?” [2]
É em uma batalha contra os alamanos que as sementes lançadas por Clotilde finalmente germinam no coração de Clóvis. Ao ver a derrota iminente de suas tropas, Clóvis lança os olhos para o céu e faz uma promessa: “Jesus Cristo, que Clotilde afirma ser o Filho do Deus da vida, tu que desejas vir em auxílio daqueles que desanimam e dar-lhes a vitória, desde que esperem em ti, eu invoco devotamente o teu glorioso socorro. Se te dignares conceder-me a vitória sobre os meus inimigos, e se eu experimentar esse poder de que as pessoas que usam o teu nome afirmam ter tantas provas, acreditarei em ti e far-me-ei batizar em teu nome” [3]. Mal tinha acabado de dizer isso, as forças alamanas debandaram e Clóvis obteve a vitória.
 
Fiel à sua palavra, Clóvis começa a aprender as verdades da fé, a fim de ser batizado. Daniel-Rops escreve que o rei franco, “ao escutar a narrativa da Paixão, exclama excitado: ‘Ah! Se eu tivesse estado lá com os meus francos!...’” [4]. Pacientemente, por meio da catequese e de seus prodígios de taumaturgo, São Remígio vai instruindo o coração de Clóvis, até que, na solenidade do Natal, provavelmente no ano de 496, ele é batizado.
 
Para a ocasião, “o prédio da catedral de Reims fora ornado de cortinas brancas e iluminado por milhares de círios aromáticos, como símbolo da beleza espiritual da Mãe Igreja que nesse dia acolhia os francos como filhos (...). O próprio Clóvis, deslumbrado ante o esplendor da decoração e dos cânticos, deteve-se na soleira do recinto sagrado e perguntou a Remígio: ‘É este o Reino dos Céus que tu me prometes? - Não, mas é o começo do caminho que a ele conduz’, respondeu o Bispo” [5]. São Gregório de Tours narra que, quando Clóvis se apresentou diante da pia batismal, com um colar supersticioso que os francos usavam, o santo bispo de Reims disse: “ Mitis depone colla, Sigamber; adora quod incendisti, incende quod adorasti – Depõe humildemente o colar, ó sicâmbrio! Adora o que queimaste e queima o que adoraste!” [6].
 
Com a conversão de Clóvis, começa a escrever-se uma nova página da história ocidental. Em pouco tempo, será fundada a França, o primeiro reino cristão da Europa, por esse motivo apelidada de “ fils aîné de l'Église – filha primogênita da Igreja”. Graças à ação de santos como Remígio, Clotilde, Genoveva, Martinho e muitos outros, os duros corações dos bárbaros e dos pagãos eram conquistados para Cristo.
 
Referências
 
  1. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 193
  2. Ibidem, p. 197
  3. São Gregório de Tours,Libri Historiarum, II, 30
  4. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 198
  5. Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP,São Remígio de Reims. In: Revista Arautos do Evangelho, Jan. 2012, n. 121, p. 32-35
  6. São Gregório de Tours,Libri Historiarum, II, 31