9. O Patriarca Invisível e a defesa da ortodoxia da fé

07/03/2014 14:39

A heresia ariana estendeu seus tentáculos até os pilares da fé católica. Pôs em xeque a própria natureza da Redenção ao questionar a divindade de Jesus. Seu veneno escorreu por todo o mundo cristão, mas, embora tenha chegado até os estertores, a Igreja não só sobreviveu como foi robustecida por essa grande luta. Saiu mais forte da batalha graças à coragem e destemor de grandes homens, dispostos a dar o sangue, se necessário fosse, para defender a ortodoxia da fé.

 

A heresia ariana estendeu seus tentáculos até os pilares da fé católica. Pôs em xeque a própria natureza da Redenção ao questionar a divindade de Jesus. Seu veneno escorreu por todo o mundo cristão, mas, embora tenha chegado até os estertores, a Igreja não só sobreviveu como foi robustecida por essa grande luta. Saiu mais forte da batalha graças à coragem e destemor de grandes homens, dispostos a dar o sangue, se necessário fosse, para defender a ortodoxia da fé. Um desses grandes foi Santo Atanásio, a quem o historiador Daniel-Rops descreve como:

Uma personalidade grandiosa e terrível, um santo que domina toda a história religiosa do Egito - e, quase da cristandade inteira - durante estes anos conturbados. Dotado de uma inteligência extraordinariamente penetrante, acostumado a todas as sutilezas do espírito oriental, mas sabendo desmascarar as falsas aparências e evitar as armadilhas graças a um bom senso positivo que não o deixava cair em qualquer logro, tinha um caráter de maravilhosa têmpera, do mesmo aço com que Deus fizera seus Apóstolos e os seus mártires, ao mesmo tempo maleável e forte, reto nas suas intenções e hábil nas suas manobras. De alma profundamente religiosa, encarnava o tipo desses grandes místicos para quem a ação é o efeito e o prolongamento da oração e que, no meio das piores lutas nunca se esquecem de que pertencem a Deus. (p. 464)

Após a morte do bispo Alexandre foi eleito para o seu lugar este homem de grande envergadura teológica e firmeza de caráter. E Atanásio logo se põe em atrito com o heresiarca Ário, o qual retornara a pouco do exílio e já estava tratando de levantar a sua doutrina. Numa surpreendente reviravolta, Ário acusa e consegue a condenação de Atanásio como herege, num processo fraudulento e vergonhoso. Atanásio é mandado para a cidade de Tréveris, em exílio. Anos mais tarde volta para Alexandria e, novamente, ao defender a fé é condenado e mandado para o Roma. Isso se repetirá ainda mais duas vezes. Somente por volta do ano 346 é que "pôde finalmente voltar a Alexandria e, durante dez anos, desfrutou de uma certa calma, o que lhe permitiu estabelecer um vasto relacionamento de mais de quatrocentos bispos fiéis ao dogma de Nicéia e escrever suas obras doutrinais mais importantes." (p. 465)

Além de incansável defensor da ortodoxia da fé, Atanásio também foi o autor de uma vasta obra literária. Dentre outros títulos, foi ele quem revelou ao mundo a beleza da vida monástica inaugurada por Santo Antão. Foi ele também quem conseguiu transpor a barreira da linguagem rebuscada e abstrata dos pensadores o cerne da fé cristã, justamente quando combateu a heresia ariana. Ele conseguiu colocar em palavras simples que:

O dogma da Encarnação, base da Redenção, bem como a certeza do Pai igual ao Filho, já não são definições ou frios enunciados: são realidades vivas e cálidas da alma. 'O Verbo se fez carne para nos tornar divinos', repete ele sem cessar. É desta afirmação que o cristianismo viverá de século em século e é dela que se tem nutrido até os nossos dias. (p. 466)

Além disso, Atanásio foi muito perspicaz ao perceber que a Igreja não podia permitir a ingerência dos imperadores em seu governo. Defendeu a independência da Igreja em relação aos governos temporais até o fim de sua vida e o tempo se encarregou de lhe dar razão. Daniel-Rops encerra o capítulo sobre Santo Atanásio dizendo que ele foi um "eminente defensor da fé e da liberdade em Cristo. Com toda justiça, a Igreja soube prestar-lhe homenagem. Foi o primeiro dos bispos não martirizados elevado aos altares e é um dos seus 'grandes doutores'. (467)

A luta maior de Atanásio foi, sem dúvida, contra o arianismo. Conforme visto na aula passada, no Concilio de Constantinopla foi elaborado um novo "Símbolo" e nele foi travada uma grande batalha, que dizia respeito justamente à ortodoxia da fé e a heresia ariana. Os fiéis à Igreja concordaram com a palavra homooúsios utilizada no novo texto, os arianos, porém, maliciosamente, trocaram esta palavra por homoioúsios. A diferença consiste em um iota, porém, não tem nada de simples. É uma diferença fundamental, pois a primeira significa a identidade do homem com Deus e a segunda, a simples semelhança ou não-dissemelhança entre ambos. Ao final do Concílio, os bispos acharam por bem proferir também alguns anátemas, visando justamente refrear a onda ariana que ameaçava a fé católica. Sobre os anátemas, Daniel-Rops esclarece:

Estas prescrições punitivas pouco dizem aos cristãos de hoje, que, na sua quase unanimidade, não pensam de maneira alguma em pôr em causa a divindade de Cristo; poderá parecer-lhes o tipo exato dessas fórmulas "bizantinas" cuja inutilidade frívola se tornou proverbial. Mas - repetimo-lo - tinham uma importância capital. O mérito dos teólogo do século IV foi terem compreendido isso mesmo e terem procurado e encontrado, para fazer frente aos seus adversários, fórmulas suficientemente precisas para salvaguardar a divindade de Cristo, que é a essência de todo o cristianismo. Cada pequena parcela de uma frase tinha em mira afastar uma ameaça de heresia. Cada palavra estava carregada de significado. Quado as lemos, compreendemos bem até que ponto deve ter sido violenta e patética a discussão sobre o "consubstancial" nas sessões do Concílio; mas compreendemos também que, embora se tentasse tornar a expressão destas fórmulas tão exatas quanto possível, ficasse ainda aberto um campo para interpretações perigosas. (p. 458)

Há que se estranhar que entre os grandes paladinos da fé não conste o nome do Sumo Pontífice da época, o Papa Libério, o qual, infelizmente, teve um desempenho desastroso nessa batalha. O Imperador Constâncio queria que todos os bispos se dobrassem diante do arianismo. O Papa Libério no início não se dobrou, permanecendo fiel à fé e foi mandado para o exílio. Por várias vezes, conta São Jerônimo, o Imperador mandou dinheiro para o Papa, quer seja diretamente quer por emissários, tendo o pontífice se recusado em todas as vezes. Ocorreu, porém, que o tédio e a solidão do exílio corroeram a firmeza do Papa e, no fim, diante das adulações e das ameças de morte, ele cedeu assinando a excomunhão de Atanásio e o credo ariano.

Apesar desse erro moral do Papa, ele em nada maculou o dogma da infalibilidade papal, posto que o ato cometido pode ser classificado como indecente e moral, mas apenas para livrar-se do exílio e da punição. O Papa Libério, com as assinaturas, manchou as páginas do Papado. O Bem-aventurado Cardeal John Henry Newman escreveu um livro sobre a vida de Santo Atanásio no qual descreve com precisão toda a desastrosa ação do Papa Libério.

Depois de muitas peripécias, no ano de 360 subiu ao trono o Imperador Juliano, o Apóstata. Ele quis reintroduzir o paganismo no Império Romano, de modo que levando o exílio de Atanásio, pois achou que os cristãos se matariam mutuamente. Contudo, o tiro saiu pela culatra pois Atanásio, com sua eloquência, estava convertendo para a Igreja os pagãos. Mandou-o para o penúltimo exílio. Atanásio morreu rodeado pelo seu clero em 373 e "era certamente o homem mais célebre, a autoridade mais notável de toda a Igreja." (466)

O exemplo de Santo Atanásio deve iluminar os dias atuais, nos quais nem sempre se sabe com certeza onde se encontra a reta fé católica, e em que a atuação de bispos, de prelados e até mesmo do Papa podem ser moralmente desastrosas. Santo Atanásio ensina que cabe aos fiéis católicos, aos homens de bem, permanecerem firmes na autêntica fé dos Apóstolos.

 

 

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